domingo, 4 de janeiro de 2009

Dinheiro traz felicidade

Dinheiro traz felicidade


Parte I

Amanda percebeu tardiamente que sua bolsa já estava nas mãos de um garoto pequeno, cada vez mais pequeno, mesmo assustada perseguiu a criança. As pessoas que presenciaram o ato não se importaram, apenas abriram caminho para o infrator. O salto alto e a calça de lycra apertada impediam movimentos rápidos e livres, e mesmo se fossem rápidos e livres ainda assim estariam em desvantagem, pois o menino era ágil e conhecia muito bem as ruas da cidade. Atravessou a Mem de Sá e já tomava os rumos da Riachuelo.
A acompanhante da morena, de nome Catarina, jovem, branca, sardenta, estudante, gorducha, baixinha e sem pescoço, degustava um cachorro quente e achou aquilo horrível, correr atrás de um menor abandonado em plena hora do lanche. Para seu prazer, avistou algo satisfeita e forçando mais o pulmão pôde dizer:
__Veja a polícia, vamos falar com a polícia!
A vítima diminuiu o passo.
Em frente a viatura dois policiais militares conversavam animadamente. Segundos atrás vendo o garoto passou por eles com a bolsa nas mãos, o mais velho apenas mencionou sem dá muita importância:
__A semente do mal está se desenvolvendo e gosta de usar bolsa feminina.
Depois chegou as moças:
__Seu guarda, aquele menor que acaba de passar por aqui, roubou minha bolsa!
O agente público com a calma própria de todo carioca, e ainda adicionada com um pouco da calma baiana, justificou-se:
__ Agora ele já vai longe.
Como se não soubesse, olhou sem muito interesse a direção que a jovem apontava. O garoto estava a uns dez, onze, doze.... metros de distância.
A mulher em desespero continuou:
__Mas o senhor está de carro, o senhor pode ira atrás dele. Na minha bolsa esta meus documentos meu dinheiro, minha agenda! tudo!!!
Tudo, era mentira. Sua alma, seu caráter, seus estudos. Família e muito mais não estavam lá...

A gordinha também gritava:
__Vamos seu policial, vamos!!!
__Olha, não acredito ser possível pega-lo, mas mesmo assim iremos.
Na mente do seu parceiro que não tirava os olhos daquele tipo perfeito de carioca, só uma coisa predominava: “ GOSTOSA... GOSTOSA...”, por isso o cabo teve que chama-lo duas vezes antes de entrar na viatura.
Catarina desapontada perguntou ao vê-los já dando partida:
__Nós não temos que ir junto?
Sua preocupação era sentar um pouco, depois daquele esforço prolongado.
__ Não precisa, eu vi o garoto e basta vocês esperarem aqui.
E ali elas permaneceram, não muito agradecidas, não muito esperançosas.
Amanda voltou-se para a amiga:
__ O que você acha?
__Acho que eles vão dividir!
__Estou falando sério!
__E eu mais ainda, a melhor coisa é a gente ir á delegacia e dar parte por causa dos seus documentos. Vai vê são até sócios!
Amanda conhecia já o pessimismo da colega, por isso não se importou tanto.
__Não, primeiro vamos esperar mais um pouco. Aqui não é o ponto fixo deles. Vamos esperar eles voltarem. Eu gravei o nomes deles. Um se chama Nato o outro Franco.
O nome completo deles eram: Osvaldo Nato Ferreira e Narciso Franco da Silva. O primeiro morava na Penha, tinha três irmãos. O pai era alcoólatra, noivo há uns quatro nos. O segundo morava em Vista Alegre, casado, pai de três filhos, tinha abandonado a faculdade de veterinária. Às vezes, freqüentava a igreja católica.
A patrulha realmente foi ao encalço do garoto, mas o que eles poderiam fazer...

Parte II

As três crianças, próximas ao um fusquinha verde, pneu careca, placa RJ.00808, dividiam o lucro da aventura capitalista.
Na bolsa havia cartões, cheques, dez dólares, uma nota de cinqüenta, duas de vinte, uma de cinco e três de um real. batom, chaves, lenço de papel, bombons e documentos e uma Amanda loura.
O menorzinho separou os objetos:
__Esses documentos vamos devolver.
__Que devolver nada!
Discordou Michel, o executor do plano.
Pita inflexível, afirmou que o documento tinha que ser devolvido e ponto final. pegou a nota de cinqüenta e dobrou até que ela ficasse com o diâmetro de um canudo e pôs na cueca. (Alguma coisa boa os políticos haviam lhe ensinado). Pelo espelho retrovisor do carro a sua frente tinha observado que os militares estavam chegando.
Disse para os amigos.
__Corram com a bolsa e depois se desfaçam dela.
As outras duas crianças ainda não tinham entendido.
__Corram e depois larguem a bolsa, nossos amigos apareceram!!
O pequeno Pitágoras ficou só
Um dos policiais parou em frente ao cúmplice o outro continuou a perseguição. Na pressa as criança não demoraram muito cumprir a ordem... O cabo parou para pegar os pertences da moça. Arquejava, sabia que a pé jamais os alcançaria, não era gordo, somente tinha uma barriga grande e inadequada para um funcionário de rua. A curta corrida o fez lembrar da necessidade de um regime há muito tempo adiada...
Quando voltou, seu amigo de farda mantinha o meliante sob a mira de uma arma. Olhou para vê se os transeuntes achavam aquela cena abusiva, graças a Deus não havia transeunte, mesmo assim recomendou, pois temia muito a tecnologia moderna com seus celulares e maquinas fotográficas que a qualquer momento podia eternizar um gesto banal de uma rotina monótona em algo criminoso :
__Calma Osvaldo. Pode guardar a arma.
__Vamos interroga-lo?
__Vamos.
Guardou a pistola.
__Então você que é o mentor. O chefe da quadrilha.
O pequeno continuou com seu olhar cínico e em silêncio. O cabo narciso reteve o braço do amigo no instante em que ele grunia:
__ Responde, miserável!!!
Olhou novamente ao redor, pôs a mão no ombro do amigo:
__ Que isso cara! Ele não deve ter nem dois anos de idade, é um bebe!
__ Que bebê! É semente do mal!! Um criminoso mirim! Futuro bandido! Uma praga!
Pitágoras não se sentiu ofendido, entretanto não concordava com a afirmativa do adulto, encarou ambos para se certificar se estavam pronto para verdade. Sabia da dificuldade de encontrar o momento certo para dizer as coisas certas as pessoas certas. Essa combinação de fatores era quase um milagre. Cristo havia conseguido com as suas boas novas, Mao Tse Tung também com seu livro vermelho. Ele há muito tempo perseguia esse ideal. Por fim, falou:

__ Eu não sou semente do mal e mesmo se fosse vocês ainda seriam os responsáveis. Pois não há semente que germine sem terra, adubo e sol. Nós germinamos na miséria, abandono e indiferença...Também não sou um criminoso mirim, apenas um desasistido pela família, pela sociedade e pelo Estado, jogado a própria sorte. Sou a matéria viva que expõe todo descaso de vocês no cumprimento da legislação que protege as crianças. Sou no máximo um infrator. Vocês já leram o ECA? O estatuto é uma prova de como a sociedade poderia ser boa, se fosse comprometida com o bem e a moral, ou o sonho de um legislador humanista... E vocês, coitados de vocês, são servos de um sistema...
Parou ao notar que o soldado estava mudando de cor...
Nato Ferreira a cada palavra do garoto ficava mais nervoso, por que ele só falava palavras difíceis? O guri atrevido merecia umas cacetadas. Se fosse mais tarde ele já havia resolvido aquilo... O soldado era devoto de São Cabral, o apóstolo que pregava o confronto armado.
O certo era ele está falando dada, gugu e pedindo doces, não ficar discorrendo sobre a lei e moral... Aquilo não era justo...
O Cabo pelo contrário teve uma reação diferente, pensou até em adotar a criança, era só um anjinho perdido num monte de lixo urbano, a mercê dos mais baixos instintos humano, entretanto sua preocupação era a influencia negativa que o menor com sua filosofia e linguagem vernacular poderia exercer nos seus pimpolhos, acostumados apenas com a inocente cultura pop: o funk, novelas e quadrinhos.

Desistiram do garoto, pegaram a bolsa e foram embora, o soldado Osvaldo ao mesmo tempo que revistava a bolsa em busca de algo de valor não parava de repetir:
__Que criança esquisita, devia está cheiradona! Que palavreado era aquele? Que idéias eram aquelas? __É a rua! Acaba com qualquer caráter! Estraga qualquer ser humano.
Finalizou o cabo.



Parte III

__ Eles voltaram.
Disse a estudante Catarina levantando-se do degrau da praça.
O carro estacionou no mesmo ponto. O soldado mais romântico foi o primeiro a sair. Nesse meio tempo as chamas da paixão iniciaram um grande incêndio no seu interior. Todo solicito, falou com a voz mais sedutora que pode encontrar.
Dirigindo-se a Amanda como se estivesse diante de uma princesa.
__Conseguimos recuperar sua bolsa. Se quiser registrar a queixa nós a levaremos à quinta DP. É pertinho daqui, na Gomes Freire.
A estudante gordinha indignada pelo cachorro digerido às pressas, pelo degrau duro e pela demora, perguntou:
__Cadê o ladrão? Por que não trouxe o vagabundo?
E ela mesma, admirada com a própria audácia, respondeu:
__ Mas também se pegassem não ia acontecer nada. Com essa droga do Eca esses criminosos podem fazer o que querem e nada acontece com eles. Vocês estão com as mão atadas! O Renato Russo que estava certo que país é esse!!
Era a segunda vez que os militares ouviam aquela palavra: ECA. Ela deveria ter alguma importância.
Amanda olhou a bolsa, os documentos estavam nela. Isso era um alívio. Cartões de créditos e cheques dão muito trabalho. Olhou agradecida os policiais. O soldado Osvaldo ainda tinha esperança de uma conversa mais informal. Uma cervejinha, uma batata frita. Quem sabe um passeio de Passat... Ele também era novo, com bermuda e camiseta ninguém lhe dava mais de vinte dois anos, por isso continuou na sua investida de Romeu angustiado:
__Precisam de dinheiro pro ônibus?
__Não, obrigada! Vamos pegar um táxi.
__E... então estamos ai se precisar de alguma coisa.
O cabo atrás ria baixinho.
A jovem agradeceu.

A polícia não podia fazer muita coisa, apesar de ter ficado calada, Amanda não concordava com a amiga. A culpa daquelas crianças estarem na rua era da irresponsabilidade dos pais que colocavam filhos no mundo como se coloca água na geladeira. A comparação não lhe pareceu muito didática, mas servia. Não estava boa para argumentação ou comparação...Outra coisa que aprendera com a mãe, era não discutir com a PM.
Sua mãe sempre lhe dizia estando errada, não discuta. Estando certa muito menos ainda.

Catarina tendo recobrado a calma, percebeu que o policial falava de uma forma adolescente, já não possuía aquela autoridade anterior do primeiro contato. O olhar era diferente, os gestos. Conhecia aquelas atitudes, mas tarde, longe dali , no ponto do táxi comentou:
__ Notou a voz daquele policial magrelo que parecia com o Tiririca? Parecia um tarado.
Ela não só notou, como desnecessariamente sua roupa implorava por aquilo.
O Big Broter diariamente lhe cobrava pesado tributo...




final
Osvaldo lamentava não saber nem o nome da sua amada e fazia uma hora e dez minutos que não dava uma palavra em resposta a gozação do amigo.
O Cabo Franco não se importava com isso, tinha coisa mais importante para preocupa-lo, a fome. Foi pegar um sanduíche no banco traseiro do carro para comer e sem olhar cuidadosamente, percebeu, para sua surpresa, do outro lado da rua, próximo a um hippie que fazia cordões. Viam com pizza, refrigerante e cola, alegres e sorridentes, aqueles três menores cujo crime lhes causaram tanto dissabores. Mexeu no mp3 do amigo, apontando:
__Olha lá! Nós aqui cidadãos de bem vamos comer joelho dormido e eles um bando de pilantras vão comer pizza.
O policial falava alto e gesticulava forte. Os menores perceberam, um deles demonstrando uma humanidade além do bem e do mal, ofereceu:
__Vocês querem? Tá quentinha!
Michel repreendeu Pitágoras.
__Deixa eles em paz, pô!
__Estou oferecendo de verdade.
Os soldados pensaram que era provocação, pensamento equivocado... apenas a bondade na sua forma mais pura. Os garotos estavam com dinheiro, estavam felizes. O PAC estava sendo comprido.
O cabo olhou para o amigo que apenas se ajeitou no banco da patrulha.
É, não era uma boa idéia perseguir os menores... e nem aceitar a pizza. Assim, conformado deu uma mordida no salgado.
Osvaldo que continuava ouvindo Roberto Carlos, apenas se virou indiferentemente. As crianças já não tinham a menor importância para ele. Sua mente e seu coração estava em outro lugar. Um lugar onde as borboletas não são caçadas, nem dissecadas, nem exibidas em paredes.
O Rio estava em paz.






fim

Rio , 18 de Dezembro de 2008
J.Duarte
Do Livro "Crônicas da Lapa"

Um comentário:

Editor Chefe disse...

Texto fascinante... porém, fica a pergunta quem é o ECA??? E o pequeno Pitágoras, muito inteligente,infelizmente não fica claro sua origem.
O texto vale o tempo investido em sua leituta, acrescentando bons juros de prazer.