domingo, 9 de novembro de 2008

Os podres

“Se a pedagogia
do sofrimento fosse eficaz,
pobre jamais teria filhos.”

Os podres


Tonhão não estava tranqüilo, Preocupava-se muito com a agitada vida urbana. Seis anos de polícia militar. Só desilusões. Olhando para o outro lado da rua, viu duas crianças cheirando cola de sapateiro. Tão pequenos e tão maus... Antes só sentia ódio... Atualmente era ódio e dó. O ódio era fruto da sua formação religiosa licurguiana, incapaz de aceitar a fraqueza humana como traço de caráter. O dó era conseqüência de uma rápida passagem pela filosofia cardecista.
Sabia que a embriaguez da droga enganava a barriga vazia e a existência inútil.
Aproximou-se das crianças. Elas nem perceberam. Olhou para os seus rostos impúberes envelhecido precocemente pela vida. A nódoa trágica da miséria encobria suas faces. Queria dizer algo esperançoso para elas, infelizmente não era poeta, nem religioso, nem político.
Com a arma em punho não hesitou. Sabia que aqueles seres não ouviriam somente palavras...
__Seus babacas! Joga essa porra fora!
__Ih! É o cana!!!
__Sujou!
A mão comprida do soldado acertou a cara de um deles, o corpo frágil, mortificados pelas privações diárias, não agüentou manter-se em pé.
O segundo menor deu dois passos para trás. Não denotava medo. Era mais uma reação de defesa.
O policial vociferou:
__Me dê a cola, moleque!
A criança riu...
__Pra que a violência, tio!
__Tio é o caralho! Se vocês fossem meus sobrinhos eu ia encher vocês de porrada, muita porrada! Vocês não estão cansados de saber que não podem se drogar em via pública?
O garoto estendeu a cola obedientemente.
O funcionário público deu uma fungada.
__É da boa!
__Socorro!!! Ladrão!
Mais adiante, perto de uma loja de calçados que fazia promoção de sapatos de baixa qualidade, uma mulher berrava histericamente. Já distante um delinqüente branco,cabelos lisos e curtos, olhos verdes iguais ao do Fábio Assunção, pernas finas e ágeis fugia com a bolsa da madame.
A criança que levou a bofetada se ergueu.
__Vai deixar ele fugir?
__Não se meta nisso, seu filho da puta! Além do mais, ela não precisa tanto daquele dinheiro!
A mulher se aproximava em passos que não seriam tão rápidos se fossem para cumprir deveres cívicos.


A senhora devia ter uns quarenta anos. Cabelos vermelhos. Cara redonda, cílios postiços e lábio escarlate artificial. Roupa feita de tecido fino importado do Paraguai. Vistosa demais para àquela hora do dia... E salto alto demais para qualquer ocasião.
Era uma afronta à fome daquelas criaturas perdidas que passavam a maior parte do dia na praça.
Chegou grunindo:
__O senhor não vai fazer nada, seu guarda? A semente do mal está fugindo não está vendo?
__Vou fazer sim! Vou prendê-la por ficar aí se exibindo!
Os dois viciados mirins começam a ri.
A moça olhou para eles com um desprezo explícito. Seriam filhos do policial? Inquiriu silenciosamente...
Voltou ao agente. O rosto avermelhado pela irritação, suor borrando sua maquiagem pesada, fazendo manchas imaginárias em seu rosto.
__Mas que absurdo é esse que o senhor está falando? Então eu não tenho o direito sagrado de ir e vir garantido pela nossa constituição?
A voz alterada da mulher começou a atrair os transeuntes próximos e distantes. Pessoas que naquela hora do dia passeavam e compravam sofregamente. Desocupados, desempregados, donas de casas, estudantes ociosos e seguidores da igreja universal cujo culto havia terminado há poucos instantes.
O agente da lei ergueu o braço armado em sinal de ameaça!
__Não quero aglomeração aqui!
A população amedrontada se dissipou... Apenas um homem ainda se manteve onde estava.
Era senhor aposentado que pensou em até defender a mulher, porém lembrou que já estava atrasado.
__Olha dona! Se eu fosse você eu caía fora daqui agora mesmo!
__Mas o pivete que me roubou?
Tonhão pôs a arma na cabeça da mulher que começou a tremer involuntariamente. Citou o economista Wilson Vieira dos Santos.
_”A violência urbana é uma distribuição de renda feita à força!” E cai fora daqui, sua safada!!!
A mulher assustada fugiu.


Os dois guris agora pareciam satisfeito.
O policial os encarou.
__Qualquer vício é uma merda, seus viados! Mas se querem cheirar cola procure um local fechado.
Houve uma silenciosa anuência entre as crianças.
Os garotos se afastaram com a cola escondida na bermuda suja e velha. O andar trôpego e o olhar desvairado da dupla se condensaram no asfalto quente e desumano da cidade...
Pobres crianças sem infância...
Tonhão guardou a arma.
E mesmo se fosse poeta, religioso ou político não havia mais nada a dizer. O Rio de Janeiro continuava lindo. Coçou o queixo. Acariciou sua arma, sem perceber que a distância os dois menores pareciam admirá-lo. Com o antebraço retirou o suor da testa. Sua garganta estava seca. Iria procurar um boteco para refrescar o seu espírito.
Um espírito cansado. Desesperado. Sem sonhos. Sem crenças. Sem amor... “Trazia na alma à mesma inscrição que o artista barroco Michelangelo Caravaggio trazia no seu punhal: Sem esperança e sem medo”
Intimamente sabia que a sociedade estava perdida...


Perdida...
Per di d a......

Fim...


Do livro “ Contos da Portaria”

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